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R$500 mil em mentiras
e as narrativas que guiam as suas decisões
Não existe pessoa mais fácil de manipular do que um egocêntrico, nem discussão mais inútil do que com um arrogante
Quase comprei um time-sharing na Disney.
Inicialmente fui me informar por curiosidade, depois quis ver como funcionava o processo de vendas até que aquilo quase me convenceu. Quase.
A narrativa era muito boa, muitos dados eram apresentados para sustentar que era uma decisão óbvia e que se pagaria muito fácil.
Tinha um detalhe, porém.
Um detalhe que quem não conhece bastante de números e de comportamento de mercado não teria visto.
Existia uma “anualidade”, que, diferente de todos os outros custos, era corrigida de uma forma diferente.
Essa anualidade perduraria por 45 anos e tornava um ótimo negócio em uma cilada gigantesca.
Não teria sido fácil achar a pegadinha se não tivesse parado um considerável tempo para fazer conta (possivelmente estaria lascado se não tivesse feito isso).
O que tirei dessa história é que a pessoa dominava toda a narrativa, ela sabia exatamente onde e como colocar os dados para aquilo parecer bom.
Refletindo em cima disso, vi que essa prática é bastante comum no mercado digital.
As narrativas que, antes eram “apenas” palavras, passaram a incorporar números para ter mais credibilidade.
O problema é que, por vezes, esses números são falsos, enviesados, contam meias-verdades ou escondem outros números mais importantes.
Em resumo, são narrativas mentirosas.
E isso é um risco gigante para a sua empresa se você não souber identificá-las.
Separei duas histórias que aconteceram este mês para ilustrar como as narrativas são construídas e como você pode identificar as mentiras.
Duas histórias que, somadas, totalizam R$500 mil em impacto de mentiras.
Algumas contra o mentiroso, algumas, infelizmente, contra a empresa.
O “guru” de tráfego que perdeu 2 projetos de R$ 140 mil reais por causa de mentiras
Como os dados apresentados de forma geral escondem a verdade e vendem uma vitória que não existe.
Em 2023, um guru de tráfego começou a ficar famoso falando sobre o seu método único de escala de orçamento.
Ele aplicou uma estratégia em um projeto e o resultado supostamente foi bom (ele não conferiu os detalhes).
Com uma amostra, ele passou a vender consultorias para ensinar a fazer aquilo que ele tinha feito no projeto inicial.
Algumas pessoas que viriam a ser clientes da Witly compraram essa consultoria e perderam muito dinheiro (além do investimento na consultoria).
Por sorte as suas campanhas tinham um componente de vendas a custo zero (tráfego orgânico) e ainda conseguiram dar lucro no final.
Esse lucro, porém, teria sido muito maior sem a tal estratégia maluca.
Só conseguimos enxergar isso com clareza depois dessas pessoas virarem nossos clientes e fazermos análises detalhadas dos números quando o estrago já estava feito.
A vitória cantada era, na verdade, uma derrota dolorosa.
Até aqui estava ruim, mas ficaria pior e depois o mundo daria as suas voltas.
Em cima desses resultados ruins, o método virou curso online.
Quais eram os cases usados para vender que o método funcionava?
Justamente os dois que tínhamos avaliado e concluído que o tráfego prejudicou o resultado.
Só que esse curso vendeu muito em 2024 (não tenho dados deste ano).
Com o seu curso vendendo muito, parte do mercado validou que aquele método funcionava.
As derrotas dolorosas viraram insumo para uma suposta vitória.
Ele usava os resultados gerais, como se o resultado fosse 100% do mérito do tráfego. Não era.
Esse mês, porém, o mundo deu uma leve volta.
Dois amigos com empresas bem grandes me procuraram para decidir se fariam um investimento de R$ 140 mil cada em uma consultoria que ensinaria a fazer escala de tráfego ao longo de um ano.
Isso mesmo que você pensou, quem vendia a consultoria era o tal guru.
Contei a história, desconstruí a narrativa que ele tinha criado e os projetos não foram fechados.
A mentira que o fez ganhar dinheiro lá atrás, agora o fez perder R$280 mil em projetos.
No que depender de mim, ele perderá mais enquanto continuar usando resultados mentirosos como prova.
O estrategista que usou números sem nenhum sentido e gerou um prejuízo de R$220 mil
Quando citar números soltos faz você parecer que entende mais do que entende
Um amigo meu decidiu fazer uma campanha ousada.
Para isso, ele contratou um estrategista que se dizia especialista naquele modelo de campanha.
Para ajudá-lo, participei de uma das reuniões de otimização daquela campanha.
Não tinha contexto dos números e tinha pouca experiência com o modelo, então mais escutei do que qualquer coisa, procurando uma forma de tentar ajudar.
Eis que no momento de passar pelos números, o estrategista usa a seguinte frase: “Estamos pagando R$30 de custo por impressão, isso mostra com clareza que estamos atingindo o público certo”.
Se você não é desse mercado, isso é a mesma coisa que dizer “Olhe! Vejo água à frente! É certo que estamos diante de um oceano.”.
Não existe nenhuma relação entre os fatos.
Ele seguiu: “Das campanhas que acompanhamos aqui com essas características, todas tiveram um retorno maior do que 4x o investimento, portanto podemos investir mais”.
Tentei convencer meu amigo de que aquilo não fazia sentido. Os dados usados para embasar a decisão eram fracos, enviesados e não mostravam toda a realidade.
Meu amigo preferiu ouvir o guru.
O resultado foi um prejuízo de R$220 mil na campanha.
A justificativa foi que o mercado está difícil (nova narrativa), que várias empresas estão tendo queda na sua receita (novos dados enviesados).
Infelizmente aqui não consegui ajudar meu amigo, mas espero que a história ajude você.
Sempre que um número for usado para embasar uma decisão, ele precisa ser trazido de forma completa, com um mínimo de detalhamento: “qual a amostra?”, “qual a fonte?”, “quem produziu o número?”, “como é o resultado se eu quebrar o resultado por origem de receita?”, “como foi calculado?”, “existe algum outro dado que poderia contradizer essa decisão?”.
Se você não tiver respostas claras e seguras para essa pergunta, você deve estar diante de uma pessoa mal-intencionada ou com baixa capacidade de análise.
Em nenhum dos casos, você a quer tomando decisões para a sua empresa, não é mesmo?
Sim, embora a primeira história tenha começado em 2023, ambas concluíram nesse mês. E, eu poderia contar muitas outras sem ter que voltar muito no tempo.
Não as trago aqui para parecer inteligente, muito menos para tentar te vender alguma coisa.
Trago para te alertar. Se você não souber identificar as narrativas mal-intencionadas, seu negócio e você mesmo correm riscos.
Existem pelo menos 4 formas de se tomar uma decisão: em cima de achismos, em cima de dados soltos, em cima de análises estruturadas e com base em arrogância.
Achismos tendem a trazer histórias, argumentos soltos ou ideias da cabeça da pessoa para embasar a decisão.
Por natureza eles são fracos. Mas, se você está numa mesa onde tudo que existe são achismos e uma das pessoas tiver uma oratória melhor que as demais, ela vai ganhar a discussão.
Se ela estiver errada, todos arcam com as consequências.
Dados soltos tendem a te contar só parte da história (normalmente aquela que não serve).
É como eu falar “ah, o mercado X está crescendo e batendo recordes”, mas deixar de fora que a maioria das empresas está caindo e o que faz o mercado subir é porque houve um aumento de 50% no número de empresas.
O mercado como um todo cresce, mas a maioria das empresas não.
Se você só tem o primeiro dado e sua empresa está em queda, você pode ter uma leitura equivocada que está muito pior do que o mercado.
A decisão com base em arrogância é fácil de explicar.
A pessoa acha que sabe tudo e vai querer seguir pelo caminho que ela acha melhor. Se der certo, ela sabia desde o princípio. Se der errado, alguém vai levar a culpa.
Não queira estar nessa mesa.
Queira estar na mesa de quem decide com base em análises estruturadas.
Não, elas não contam 100% da história, mas elas revelam tudo que há para ser contado.
A partir daí, vai da sua capacidade de interpretação e visão de negócio para tomar a melhor decisão.
Muitas vezes ela já virá pronta. Em algumas vezes, porém, você terá que decidir em cima das melhores análises que tiver e saber que você tomou a melhor decisão possível com o que tinha.
É muito possível que ela tenha mais chance de sucesso do que decidir em cima de achismos, dados soltos ou arrogância.
Seu momento de refletir
- Quais as narrativas você está deixando guiar suas decisões?
- Será que os números que trazem para você realmente têm lastro?
Espero que tenha curtido o percurso de hoje.
Grande abraço e até a próxima milha,
César Mazzillo
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Dados no Cotidiano
De CLT a empreendedor ou de empreendedor a CLT?
Essa semana li no thenews uma matéria que destacava que 56% dos brasileiros que deixaram a CLT para empreender gostariam de voltar ao regime normal de carteira assinada.
A maior motivação seria a alta mortalidade das empresas, cerca de 60% das empresas morrem em 5 anos.
Escolhi essa estatística, porque ela conversa diretamente com as falsas promessas e mentiras que comentamos acima.
É claro que é difícil empreender, por isso a motivação e a vontade correta fazem toda a diferença na chance de sucesso.
O mais interessante é que existe uma estatística antagônica (Sebrae): 40% dos trabalhadores com carteira assinada sonham em abrir o próprio negócio.
Só que esse número já foi de 60% em 2022 (o recorde da série histórica), um dos anos do boom do digital e de outras formas de empreendedorismo, seguindo o fim da pandemia.
40% é o menor valor dos últimos 5 anos por sinal (não citaram isso no texto).
Basicamente podemos ter uma narrativa aqui (sem saber se é a correta) que as informações e meios que foram possíveis com o meio digital aumentaram o desejo e a facilidade do brasileiro em empreender.
Porém, ao momento de realmente fazer a coisa acontecer, se vê que o buraco é bem mais embaixo, o que faz com que as pessoas que resolveram empreender queiram voltar e as pessoas que ainda não tentaram sigam com essa vontade.
E é aqui que as narrativas vendidas surgem.
O problema não é despertar o sonho de empreender nas pessoas. Isso, por sinal, é um belo trabalho.
O problema é vender o sonho sem mostrar o preço do ingresso.
Fontes: thenews.cc, Global Entrepreneurship Monitor, Sebrae.
Vá uma milha a mais
Se você quiser um livro que te ajude a não ser enganado por narrativas falsas de dados, recomendo muito o Calling Bullshit – The Art of Skepticism in a Data-Driven World (Carl T. Bergstrom & Jevin D. West)
Infelizmente, o livro ainda não foi traduzido para o português, então montei um resumo traduzido no Notion com a ajuda das IAs para você dar uma olhada.