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A arte de torturar os números
Como estão manipulando suas decisões
Existem três tipos de mentiras: mentiras, mentiras deslavadas e a estatística
Quarta-feira à noite, acesso um portal de notícias qualquer e me deparo com “Banco Central sobe a Selic para 14,75%. Brasil agora tem a terceira maior taxa de juros real do mundo.”
Logo abaixo: “Descubra quanto rende R$1.000,00 na poupança.”
Fui correr na manhã seguinte com isso na cabeça...
Poxa... uma pessoa desavisada, entra nas duas matérias e pensa “nossa, a renda fixa está muito melhor, vou vender minhas ações e colocar tudo em renda fixa”.
No dia seguinte, milhões de reais derretem na bolsa de valores em direção à renda fixa. Olha o impacto do índice Ibovespa após as decisões do COPOM
Data | Decisão do Copom | Desempenho Ibovespa |
---|---|---|
30/01/2025 | Aumento de 1% | Queda de 0,61% |
11/12/2024 | Aumento de 1% | Queda abrupta de 2,74% |
07/11/2024 | Aumento de 0,5% | Queda forte de 1,43% |
19/09/2024 | Aumento de 0,25% | Queda forte de 1,55% |
02/08/2024 | Aumento de 0,25% | Queda de 1,21% |
10/05/2024 | Aumento de 0,25% | Queda de 0,46% |
Se somarmos as quedas frente às decisões do COPOM, isso totaliza quase 10%, um valor absurdo, que totalizaria a valor atual cerca de R$432 bilhões em valor de mercado das empresas listadas.
Definitivamente nossa política monetária é polêmica.
E...corta! (o texto não os juros)
Eu não sei qual o seu sentimento até aqui.
Talvez se você entenda mais de investimentos esteja com raiva de mim.
Talvez se você é mais leigo está preocupado.
Sinceramente, eu acabei de usar estatística para manipular seus sentimentos (depois me conta se funcionou).
Eu usei pelo menos 4 técnicas que usam diariamente contra você.
Fiz isso por uma missão educativa, eu fico com raiva quando vejo essas coisas.
Fico com raiva, porque sei que a grande maioria das pessoas não vai ver a manipulação.
Me inspirei em escrever o texto dessa forma depois de ler “Acredite, estou mentindo” de Ryan Holiday.
Meu objetivo no texto era minar a política monetária do país, a qual, sinceramente, não tenho conhecimento suficiente para avaliar.
Eu comecei isso contando uma história com dois fatos. Aquelas manchetes estavam em todos os portais de notícia na quarta-feira (assim como estão depois de toda decisão do COPOM).
O motivo: gera muito clique.
Aí eu comecei a te manipular com uma correlação que não tem causalidade de fato comprovada. Ou seja, parece que um número influencia o outro, mas não passa de coincidência.
Mas eu te coloquei uma tabela e te provei isso...
Todas as decisões do COPOM geraram baixas do Ibovespa.
Será?
Você provavelmente não se deu conta, mas eu omiti as decisões de março deste ano e de junho do ano passado, em que o Ibovespa subiu no dia seguinte.
Entenda, elas não me ajudavam a provar “a minha verdade”, então simplesmente não coloquei elas na tabela.
Infelizmente, isso é mais comum do que você e eu gostaríamos.
Na tabela, eu ainda usei uma técnica para aumento de impacto: adjetivos fortes.
Usei “abrupta” uma vez e “forte” duas vezes (não usei em todas para você não sacar). Isso tende a aumentar o impacto dos números.
É possível que eu tenha conseguido fazer você pensar que uma queda superior a 1% é forte, mas o Ibovespa cai mais do que 1% em 18% dos pregões do ano...
Depois disso, eu ainda empilhei duas técnicas que podem ser muito usadas para o mal (como eu fiz, ilustrativamente): arredondamento e extrapolação de grandes números.
As quedas somadas (que nem são o cálculo correto), totalizavam cerca de 7%. Eu arredondei para 10%. Dois dígitos chamam muito mais a atenção do que um .
Como a maioria das pessoas lê rápido, muitas nem se deram conta.
E aí eu usei uma extrapolação para chocar. A grande maioria das pessoas se choca ao ver números muito grandes. Como o valor de mercado do Ibovespa somado é na casa de trilhões, qualquer porcentagem gera um valor alto.
Se eu estou com 10%, isso gera múltiplos bilhões. As pessoas tendem a ficar horrorizadas.
Depois de jogar muitos números plausíveis e conectados em você, eu direcionei para a conclusão que queria: chamar a política monetária de polêmica, um termo tendendo ao neutro (usei esse termo para caso alguém parasse de ler ali, não quero fazer o que desprezo).
Eu poderia ter usado catastrófica, destrutiva, etc...
É bem possível que eu não convencesse 100% dos leitores, mas eu convenceria uma boa parte. Essas pessoas compartilhariam eventualmente isso nas redes e uma possível mentira embasada em estatística seria “verdade”.
E isso acontece centenas de vezes, todos os dias.
Eu usei o exemplo de notícias, mas poderia ter usado o de anúncios, conteúdos de redes, propagandas de TV, etc.
Nosso percurso de hoje é sobre “mentir com dados”.
Quero te mostrar como usam isso em você, e quais conhecimentos você precisa ter para se proteger.
Importante ressaltar: não quero que você interprete que estou atacando deliberadamente todo mundo que gera notícias
É claro que não são todas as pessoas que fazem isso por mal, talvez não seja nem a maioria.
Aliás , muitos tentam ajudar e educar, como estou tentando fazer aqui.
Mas , infelizmente, alguns distorcem os números por desconhecimento, por modelagem, por copiar um estilo que funciona.
E é isso que me preocupa.
Na média, os brasileiros não entendem de estatística e matemática.
Aliás, segundo dados do Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) de 2019, apenas 5% dos estudantes do 3º ano do ensino médio demonstraram o conhecimento esperado em matemática.
Infelizmente, muitas dessas pessoas são presas fáceis para manipulações estatísticas.
Isso até pode explicar parcialmente o crescimento astronômico das bets no país.
Saber interpretar bem números, dados e “fatos” é fundamental na sua vida pessoal e profissional. Se você tem responsabilidades de tomada de decisão na sua empresa, então, nem se fala.
Já cansei de ver pessoas jogando dados em reuniões de diretoria, simplesmente para fazer o seu ponto passar (muitas depois tiveram que usar outros dados para tirar o seu da reta quando o plano falhou).
Entenda uma coisa: dados não falam por si.
Quem interpreta esses dados escolhe o que e como contar aquilo.
Se você não aprender a fazer isso por conta ou ter pessoas que confia muito fazendo isso por você, corre o risco de te manipularem.
Para te ajudar nisso, quero trazer algumas técnicas que podem gerar conclusões erradas (por manipulação, preguiça ou até falta de repertório).
Quero trazer alguns exemplos práticos também para você visualizar o impacto.
1 - Trabalhar com a média, sem se atentar aos desvios e segmentações
Exemplo do Cotidiano: a temperatura média de determinada região do mundo é de 30°C. Com essa informação, você pode pensar: “ Ah, uma região quente”.
Mas estou falando do deserto do Saara, médias de 30°C, máximas que podem chegar a 50°C e mínimas que podem bater temperaturas negativas. Isso provavelmente mudaria sua decisão de roupas...
Exemplos de negócios: A campanha teve uma conversão média de 1% frente a uma meta de 0,8%. Bom?
Talvez não.
Os públicos captados organicamente tiveram 5% de conversão, enquanto os que foram pagos tiveram conversão de 0,2%.
Além disso, esses públicos geraram um prejuízo de 300 mil reais, enquanto os públicos orgânicos um lucro de 900 mil reais (o que gera um lucro final de R$600 mil).
A meta estava orientada pela média da última campanha, o que não servia como um bom referencial.
Sem olhar a nível quebrado, a empresa seguiria repetindo a estratégia e tendo um lucro muito menor do que o possível...
Trabalhar com a média é uma das coisas mais arriscadas a se fazer. Você precisa analisar os desvios e, se eles forem relevantes, aprofundar os dados para entender o comportamento segmentado.
2 – Extrapolação percentual
Vou exemplificar essa com duas notícias/manchetes e uma frase que ouvi em uma reunião de negócios. Para deixar claro a diferença, vou escrever lado a lado como a manchete foi noticiada e como ela deveria ser escrita para ser realmente clara para o leitor
Como tentam te manipular “Casos de internação aumentam 800% na Grande Porto Alegre.” | Como deveria ser escrito “O número de pessoas internadas aumenta de 1 para 8 em uma semana na Grande Porto Alegre. Número é comum dada a época do ano e representa menos de 0,0002% da população.” |
Como tentam te manipular “Comer carne dobra a chance de desenvolver determinada doença.” | Como deveria ser escrito “A pesquisa detectou um aumento de potencial de 0,00001% (1 em 10 milhões de pessoas) para 0,00002% (2 em 10 milhões) na chance de desenvolver determinada doença ao comer carne, o que dada a amostra pesquisada é estatisticamente irrelevante.” |
Como fazer parecer melhor Tivemos uma melhora relevante na nossa conversão, crescemos 3x frente à campanha anterior. | O que é a realidade “Nossa conversão subiu de 0,1% para 0,4%, sendo que a taxa necessária para nos dar um resultado positivo é de, pelo menos, 1% em cada um dos públicos. Melhorou, mas ainda temos muito trabalho pela frente” |
É bizarro pensar, mas o fato é o mesmo, os números são os mesmos, só foram apresentados de formas diferentes.
A primeira forma de escrita usa a estatística para distorcer o fato (nos 3 casos, fazer parecer maior e mais relevante do que é).
Já a segunda forma explica o dado, fornece contexto e ajuda a pessoa a chegar na interpretação correta.
Qual que você mais vê sendo usada por aí?
3 – Recortar períodos convenientes
Essa é a favorita de algumas empresas mal-intencionadas do mercado financeiro. Você recorta apenas o período que o dado está a seu favor e cria toda a sua narrativa em cima disso (como tentei fazer com você no início)
Se você entrar na sua corretora agora, talvez até encontre um filtro: “Maiores crescimentos nos últimos meses”.
O problema é que performance de ativos não se mede em meses e sim em anos. Não se mede apenas com valorização, mas também com volatilidade.
O exemplo foi financeiro, mas poderia ser aplicado a qualquer coisa.
A regra aqui é: analise um período condizente com o impacto de sua decisão.
Se você vai fazer um investimento para os próximos 10 anos, deveria olhar a performance dos ativos que quer investir por pelo menos o dobro ou triplo disso para avaliar o comportamento.
Aqui entram alguns outros fatores que você tem que cuidar em análises, como efeito de sazonalidade (quando o período do ano impacta no resultado) e viés de coleta (quando você ignora o todo para mostrar as exceções).
4 – Ignorar contexto e bases comparativas
Não existe bom indicador sem referencial, não existe boas análises sem bases comparativas.
Esse é o conceito que nos prova que nem todo crescimento é um bom resultado e nem toda queda é um resultado ruim.
Vamos desdobrar um exemplo aqui:
Manchete: PIB do Brasil cresceu 11% desde 2019.
Análise de Apoio: A média dos países foi de 8% no mesmo período, então o Brasil cresceu acima da média.
Problema: a média dos países compara cenários nem um pouco relacionáveis ao nosso país. Países em guerra, países sem a menor possibilidade de desenvolvimento econômico, etc...
Análise mais adequada: comparar aos demais países das 10 maiores economias do mundo, onde o Brasil se encontra
Nova análise de apoio: A média de crescimento dos outros 9 países foi de 11,8%, já posicionando o nosso país abaixo da média.
Problema: estou ainda trazendo para comparação países com economias notoriamente estagnadas (como os países europeus), sendo que a nossa condição de país emergente nos dá maior chance de crescimento frente a eles.
Análise mais aprofundada: aprofundar o crescimento de países que estão em posição econômica similar e no TOP10 (Índia e China).
China: 29%
Índia: 33%
Isso posiciona o Brasil bastante abaixo.
Perceba que o crescimento do país não mudou nas 3 análises, mas a base comparativa fez a interpretação e conclusão sobre o número alterar de uma perspectiva positiva para uma negativa.
Você deveria usar a mesma lógica na sua empresa para avaliar o seu crescimento.
Independente das técnicas que podem te prejudicar e te cegar em certas decisões, existe um conhecimento que combate isso: saber analisar e interpretar dados.
E você pode contar comigo para te ajudar com isso
Seu momento de reflexão
- Já havia parado para pensar nisso?
- Acha que mais pessoas usam a estatística contra você ou você usa ela a seu favor?
Espero que tenha curtido o (tortuoso) percurso de hoje.
Grande abraço,
Mazzillo
Dados no Cotidiano
"No Brasil, o desemprego caiu para 7,8% em 2024."
Parece ótimo, né? Mas se você descobre que a taxa só considera quem está procurando ativamente por emprego (viés de coleta), o número muda de figura — quem desistiu de procurar nem entra na conta, e esse número, obviamente não é divulgado oficialmente
Esse é o tipo de dado que apresenta o que o analista quer falar.
Vá uma milha a mais (ou por que não, duas?)
Duas indicações muito boas se você quiser seguir no assunto.
A primeira é um TED bem rápido feito pelo Mike Liddell que mostra de forma ilustrada como a estatística pode ser manipulada.
A segunda é o livro que me inspirou a escrever essa News: “Acredite, estou mentindo” de Ryan Holiday. Só te deixo um alerta, pois depois de ler esse livro você aumenta sua chance de se tornar uma pessoa mais cética. Eu até poderia criar uma estatística aqui, mas acho que, se você chegou até aqui, já está vacinado hahaha