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Não se trata do vinho..
Nem tudo que parece ter relação, de fato tem.
Em uma palestra há algum tempo, encerrei dizendo que análise de dados era como um bom vinho de guarda: “Conforme o tempo passa e você deixa a maturação acontecer, melhor o resultado.”
O tema vinho e análise de dados voltou essa semana de uma forma bem inesperada.
Não é todo dia que você ganha uma aula de análise de dados e padrões do seu terapeuta.
Enquanto falávamos sobre qualidade de sono, ele me contou o caso de um outro paciente que estava tendo dificuldades em dormir.
Aparentemente, o paciente estava tomando 2-3 cálices de vinho toda a noite, logo antes de dormir. Segundo ele, por recomendação médica.
Quem já não ouviu aquela frase clássica: “Um cálice de vinho por dia faz bem para a saúde”?
Até então, eu nunca havia questionado essa frase, afinal sempre é bom ter motivos para apreciar um bom vinho.
Eis que meu terapeuta me provoca com a seguinte frase: “Será que é o vinho, César?”
Ele viu que eu travei.
Aí ele continuou: “Quando tu vai tomar um vinho, tu desacelera, não é? Tem um ritual... certamente tu e a Manu se sentam, conversam e comem alguma coisa que vocês gostam. Ou vocês tomam o vinho junto com amigos, riem, conversam...”
E aí complementou a pergunta: “Então...será que é o vinho? Ou os rituais que acompanham o vinho?”
Aquilo grudou na minha cabeça, eu estava vendo uma análise de correlação e causalidade embasada em reconhecimento de padrões na minha frente.
Eu não revisei a estatística de todos os estudos que afirmaram que um cálice de vinho faz bem, nem vou fazê-lo, porque não é meu intuito aqui.
Certamente existem benefícios sim.
O mais provável é que seja um misto das duas coisas, mas o que realmente importa aqui para nós é o questionamento que foi feito.
É entender que quando alguém traz uma verdade sustentada em uma correlação, muitos fatores relevantes podem ter sido deixados de fora. E o contexto muda a decisão.
Vamos a um exemplo que muita gente comentou essa semana: A Pizza e o Pentágono
Durante muitos anos, o aumento no volume de pedidos de pizza nas redondezas do Pentágono era monitorado pelos serviços secretos americanos.
Motivo: historicamente, quando as luzes ficavam acesas até tarde por ali e o pedido era feito em grande quantidade, alguma operação militar estava prestes a acontecer.
A correlação até então era real.
Mas aí veio o problema: jornalistas descobriram essa informação e passaram a noticiar que, quando o número de pedidos de pizza subia, um ataque se aproximava.
Resultado? Toda vez que a pizzaria da região começava a bombar, o mercado reagia, achando que vinha bomba por aí. Especulações começavam a ganhar os holofotes e (muitas) decisões erradas eram tomadas.
Só tinha um problema: nem sempre era verdade.
Às vezes era só um jogo da NBA ou uma entrega grande para um evento.
A correlação existia, mas a causalidade passou a ser presumida. E isso é muito perigoso.
Vou trazer um outro exemplo muito próximo a mim.
Um dos maiores produtores de conteúdo e empresários do mercado digital sempre abria suas campanhas nas terças-feiras. Havia um padrão.
Resultado: todo mundo começou a copiar. E cada pessoa vinha com uma história melhor que a outra do porquê:
“As pessoas estão mais propensas a comprar”;
“Terça não tem nenhum evento importante pela noite”;
“Nossa, testei aqui e, para meu público, foi muito melhor”;
E por aí vai...
Um belo dia, alguém fez a ação mais sensata frente a isso tudo. Perguntou para a pessoa o motivo: “Érico, porque você abre as campanhas na terça?”
A resposta: “Sempre tem muito ajuste para fazer um dia antes de abrir, então se eu abrisse segunda, todo mundo teria que trabalhar no domingo. Aí como não faz diferença, eu abro na terça.”
E a correlação entre terça-feira e o melhor dia para abrir uma campanha foi por água abaixo. Não passava de uma simples coincidência.
Eu sigo achando que a habilidade de reconhecer padrões é uma das mais importantes para quem trabalha com dados, mas você não pode parar aí, precisa analisar e interpretar os padrões.
Do contrário, você se torna um alvo fácil das correlações sem sentido.
Vamos a um exemplo onde isso foi muito bem-feito, um caso também famoso por ter acontecido no futebol.
Você lembra dos pênaltis defendidos por Tim Krul, o goleiro holandês, na Copa de 2014?
Ele não era o goleiro titular, mas foi colocado em campo nos minutos finais da prorrogação só para os pênaltis.
Parece loucura, mas a Holanda tinha uma rotina: analisavam estatisticamente os batedores adversários. Não só isso, eles também analisavam a consistência e os fatores que faziam o jogador alterar a cobrança. Eles olhavam para o contexto.
Krul entrou em campo sabendo onde cada jogador tendia a bater. E acertou. Defendeu dois, classificou a Holanda, virou herói do jogo.
Aí sim, um caso em que o padrão era real, a correlação era estatisticamente robusta, o contexto foi levado em consideração e a causalidade comprovada.
E tem um detalhe: ele não “chutou” para o lado do “instinto” quando entrou em campo e ficou frente a frente com os batedores.
Ele sabia para onde pular e ele sabia que não iria acertar todas, mas que a chance seria muito maior se ele seguisse fielmente a estatística. Ele não estava se baseando em dados brutos, ele estava se baseando em inteligência.
Eu acredito que a provocação do João, meu terapeuta, mexeu tanto comigo por dois motivos.
Um, ele estava me dando uma aula sobre a minha área de atuação, mostrando como a habilidade de análise de dados é muito mais o pensamento do que a execução.
Dois, ele me mostrou o quão fácil é atribuir mérito ao que é mais “fácil”, mais “legal” ou que “mais vai chamar a atenção das pessoas”.
É mais bonito acreditar que o vinho é o responsável, do que que o que salva é o ritual de relaxar, o tempo desacelerado, o convívio social, o prazer em pequenas pausas.
Talvez seja isso que melhora o coração. Mas será que isso vai chamar tanto a atenção?
Nos negócios, acontece igual.
Quantas vezes atribuímos o sucesso de uma campanha ao “criativo incrível”, quando, na verdade, o que funcionou foi o processo... ou a consistência ou todo o resto do investimento que foi feito antes?
Quantas vezes deixamos de repetir uma estratégia boa porque o contexto mudou, e a gente jogou fora o que era, de fato, valioso?
O problema não é errar a leitura. O problema é nem se dar ao trabalho de ler com calma, de interpretar, de aprofundar...
Em uma realidade que perguntamos tudo às IAs (e muitas vezes sem o contexto devido), tendemos a virar uma máquina de encontrar padrões que parecem explicar as coisas, mas que, na verdade, estão nos afastando da causa real.
Reconhecer padrões é uma habilidade preciosa. Mas ela vem com uma responsabilidade: entender o contexto.
É isso que permite não confundir correlação com causalidade.
A diferença pode parecer sutil, mas é ela que separa quem toma boas decisões de quem só repete fórmulas que já não funcionam.
Sempre que você ouvir algo do tipo “toda vez que fazemos X, acontece Y”, vale parar e se perguntar:
Será mesmo?
O que mais estava acontecendo junto?
O que mudou desde a última vez?
Isso vai aumentar o seu repertório, isso é o que vai te dar experiência.
Seu momento de refletir:
- Nas suas análises ou interpretações de fatos, você tem colocado tempo para separar coincidências de causas?
- Quando você nota um padrão, vai a fundo para explicá-lo ou fica no raso?
Espero que tenha curtido o percurso de hoje.
Grande abraço e até a próxima milha,
César Mazzillo
Dados no Cotidiano:
Segundo uma pesquisa da Royal Statistical Society, apenas 38% das pessoas conseguem identificar corretamente quando uma correlação não implica causalidade. Entre os jovens de até 25 anos, esse número cai para 18%.
Ou seja: a maioria das pessoas acredita que duas coisas acontecendo juntas significa que uma causou a outra.
Se isso vale para saúde, economia, marketing ou política... imagina o estrago.
Interessante ver também uma correlação no estudo que mostra que quanto mais velha a pessoa fica, mais chance ela tem de fazer a identificação correta - e assim conseguimos ver a importância da experiência e da bagagem.
Vá uma milha a mais:
Para combinar com o tema dessa semana, minha sugestão é o livro “O Andar do Bêbado”, de Leonard Mlodinow.
Ele explora como o acaso, as correlações falsas e as probabilidades afetam nossa vida muito mais do que imaginamos. Vale a leitura!